segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Astrologia e histórias, fiando o entendimento profundo...

Quando iniciei o meu percurso nos contos, trabalhava como astróloga, e uma das coisas que mais me cativou na arte de contar histórias foi justamente o facto de a história ser matéria prima essencial à construção de uma maior consciência da nossa vida anímica. Na altura percebi que ao trocar a astrologia pelas histórias estaria a oferecer às pessoas ferramentas transversais. À alguns meses iniciei um trabalho de estudo sobre a obra da Marina Colasanti e encontrei este conto, que ando a mastigar e a digerir para poder contar em público. A beleza dele é que é a melhor explicação do que em Astrologia significa vir de Capricórnio para Carangueijo. Assenta no meu tema Natal que nem uma luva e é incrível como 10m de leitura ofereceram-me o entendimento profundo que anos de estudo de astrologia não conseguiram.
Este é o poder de uma história!


Eis o conto:

Quase tão leve
      Naquela manhã de primavera o inesperado aconteceu, o velho monge não conseguiu voar. Havia feito suas abluções, havia meditado longamente e longamente repetido as palavras sagradas. Havia elevado o espírito, mas o corpo, ah! o corpo não abandonara seu peso.
     Com certeza, pensou o velho penitenciando-se, faltou-me a fé.  E humildemente voltou a purificar-se na água gelada e, nu no ar cortante, orou até sentir-se tomado pelo calor de mil sóis.  Mas, luminosa embora sua alma, não houve meio do corpo pairar acima do chão.
     Onde, onde falhei? perguntava-se o velho do fundo da sua sabedoria.  E não encontrando em si mesmo a resposta, envolveu-se no pano áspero que era toda a sua indumentária e, cajado na mão, saiu caminhando à procura.
     Não precisou andar muito para chegar ao grande carvalho que se erguia perto do mosteiro.  Ali, em fins de tarde, tantos e tão ruidosos eram os pássaros, que cada folha parecia ter asas.  O velho 0lhou longamente os pássaros, àquela hora ocupados com suas crias, seus ninhos, sua interminável caça de insetos.  Parecia justo e fácil que se movessem no ar.  Talvez sejam mais puros, pensou.  E querendo pôr à prova a pureza do seu próprio corpo, permaneceu por longo tempo de pé, debaixo da copa, até ter ombros e cabeça cobertos de excrementos das aves.
     Porém aquele corpo magro e pequeno, aquele corpo quase tão leve quanto o de um pássaro, negava-se a dar-lhe a felicidade do vôo.  E o velho recomeçou a andar.
     Caminhando, olhava o céu ao qual sentia não mais pertencer.      

     Ouviu o grito do gavião e o viu abater-se, altivo e feroz, sobre uma presa.   Até ele, que agride os mais fracos, tem o direito que eu não mereço, pensou contrito.  E mais andou.  Viu o azul cortado por um bando de patos selvagens em migração.  Lá se vão, de uma terra a outra, de um a outro continente, disse em silêncio o velho, enquanto eu não sou digno nem de mínimas distâncias.  E mais andou.  E viu as andorinhas e viu o melro e viu o corvo e viu o pintassilgo, e a todos saudou, e a todos prestou reverência.

     O dia chegava ao fim.  Sombras aladas cortavam a escuridão, morcegos e insetos cruzavam-se nas sombras.  Ainda sem resposta e já sem forças, o velho monge sentou-se frágil sobre as pernas cruzadas, repousou as mãos no colo, meditou. 

     Vagalumes acendiam por instantes o espaço à sua frente.  Empoeirado, sujo, com pés e mãos cheios de impurezas, o velho ainda assim sentiu-se mais leve e abençoado do que havia estado de manhã.  Seu corpo não ascendia.  Pelo contrário, pesava mais sobre o solo do que pesa
um pássaro pousado.  Mas aos poucos a paz iluminava intensíssima sua alma porque, do seu corpo, delgadas e pálidas como se extensão da própria pele, raízes brotavam, logo mergulhando chão adentro.  Seu tempo do ar havia acabado.

    Começava agora para ele o tempo da terra, daquela terra que em breve o acolheria.


                                                       Fim
Conto retirado de: http://www.recantodasletras.com.br/resenhasdelivros/2454187

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